Por: Ellyn Lago
A criação de arte inspirada por doenças infecciosas graves tem raízes históricas. Os surtos dessas enfermidades alcançaram tempos de guerra, atingiram antigas civilizações, refletiram em revoluções, bem como na política, e também tiveram influência nas manifestações artísticas.
Nessa perspectiva, de acordo com Cássia Pérez da Silva e Erico Marmiroli – pesquisadores do Programa Interunidades Estética e História da Arte da USP – em seu recente artigo acerca da covid 19 no Jornal da USP, a Peste Negra levou a uma subsequente alteração na forma de pensar, sendo refletida no meio artístico. A peste bubônica, como também pode ser chamada, surgiu em torno de 1341 e tem a estimativa de 75 a 200 milhões de mortes na Eurásia, Europa e Ásia. O surto vivenciado pela sociedade medieval, além de alcançar uma expressiva taxa de mortalidade, provocou uma dualidade de comportamentos. Houve, assim, de um lado, o agravamento do rigor religioso – considerado uma característica marcante do período –, como forma de alcançar a salvação, e, de outra parte, o aumento pela procura de atividades que oferecesse prazer, já que, naquela situação de alta mortandade, o futuro, o amanhã, era imprevisível.
Afresco Dança da Morte de Giacomo Borlone de Buschis, 1485, Clusone, Lombardia.
Já no século XXI, de acordo com os pesquisadores da USP, o cólera levou para a arte questionamentos sociais levantando indagações sobre a doença, a pobreza, a fome e o tipo de tratamento médico dado à época. Na obra “Um médico da cólera", de Robert Cruikshank, o artista acentuou as dúvidas existentes acerca da lisura de profissionais que estavam enriquecendo com o surto. Interessante notar também o caráter atual que a obra ainda possui.
Os pesquisadores ressaltam também a grande mudança percebida no mundo das artes após a Gripe Espanhola, que ocorreu entre 1918 e 1920.
“Um médico da cólera", de Robert Cruikshank
Acometido pela doença, o pintor Gustav Klimt (1862/1918) - um dos fundadores do movimento da Secessão de Viena, que ficou conhecido pelos seus retratos da elite de Viena - também sondava com a morte, como retratado na obra “A Vida e a Morte”. Infelizmente o artista austríaco não resistiu à gripe.
Além dele, até mesmo nomes como o do pintor norueguês Edvard Munch, famoso pelo quadro “O Grito” (1893), sobreviveu à Gripe Espanhola, e, convalescente da doença, decidiu registrar o momento pintando o autorretrato “Depois da Gripe Espanhola”, em 1919.
“A Vida e a Morte”, Gustav Klimt “Depois da Gripe Espanhola”, Edvard Munch”
A arte na realidade da Covid-19
Nas eras mais recentes, o surgimento de novas pandemias impactou todo o mundo, estabelecendo inéditas formas de interação e de conexão entre as expressões artísticas atuais e seus artistas. No dia 11 de março de 2020, quando o Coronavírus já era uma realidade em diversos países, a Organização Mundial da Saúde (ONU) decretou a pandemia da covid-19. Diante de novos padrões, protocolos e condutas tão duramente impostos pela temida realidade da pandemia, muitos encontraram na arte uma maneira de enfrentar, suportar e sobreviver ao desconhecido.
O fechamento de espaços culturais, instituições de ensino, locais públicos afetou o ritmo dos artistas, de suas produções e suspendeu – ou deu um novo direcionamento – o andamento de diversos projetos da esfera artística. Sobre isso, a equipe do Blog Vibrance conversou com artistas e pesquisadores da área para compreender quais foram os efeitos da pandemia do novo Covid-19 na arte.
Com a explosão da doença, diversas partes da sociedade tiveram que se adaptar e se modificar para encaixar-se nos novos moldes mundiais: isolamento, estagnação, medo, avanço do mundo digital e restrições. Entre os afetados com essas modificações, está a arte e as organizações artísticas no geral, que, dada a exigência da época, precisaram se transformar para resistir e enfrentar a pandemia.
De acordo com Júlia Angoti, artista e graduanda do curso de Artes Visuais da pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), o processo de adaptação, por mais que tenha sido turbulento, foi uma forma de desenvolver novos meios artísticos. “Eu sempre gostei e estive com a arte, mas foi justamente por causa da reclusão da pandemia que eu comecei a buscar outros meios artísticos para conseguir me expressar”, conta.
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Se, por um lado, a pandemia fez com que vários artistas tivessem de se adaptar aos novos padrões, por outro, foi na reclusão e no distanciamento que diversas pessoas tiveram o primeiro contato com a arte ou com uma profissionalização dela. “É complicado falar que a pandemia foi boa, ela não foi boa! Entretanto, foi onde tudo começou, foi o meio em que eu aprendi a produzir”, diz Erictopus – artista plástico muralista, arquiteto e urbanista formado na UFU –, sobre seu processo de profissionalização na arte. “Esse (seu trabalho) é um ‘filho da pandemia’, eu não sei como é começar a produzir sem ela, mas eu sei como é estar agora fora dela. A produção se iniciou nos moldes da pandemia. Hoje, eu faço muitas coisas sozinho, justamente porque eu comecei sozinho e é uma experiência que o isolamento me trouxe, não voluntariamente, mas porque a gente não podia sair”.
"Stay Home", Ashkan Forouzani
Considerando o cenário vivido de isolamento social provocado pelo coronavírus Sars-CoV-2, no qual as artes, como visto, foram obrigadas a se adaptar ao novo contexto de distanciamento, impedidas de produzir seus processos criativos por meio de relações presenciais, pergunta-se: como se deu a criação artística durante esse período tão delicado para as relações humanas?
Sobre o processo criativo em meio à realidade pandêmica, Laro, artista e graduando do curso de Artes Visuais da UFU, afirma que a pandemia ofereceu possibilidades e percepções diferentes do entorno. “Nós ficamos muito mais acostumados com uma tela na nossa frente e a nossa percepção de consumir arte ficou completamente influenciada por causa disso. Todo o contato que eu não tinha, eu transmitia para esses trabalhos”, conta o artista.
Da mesma forma que apresentado por Laro, outros artistas também ressaltam a importância da saúde mental conectada à arte durante os períodos de reclusão. Segundo Júlia, por mais que o tempo para criar tenha se ampliado, as questões mentais também tinham grande espaço nas produções: “A inspiração, normalmente, vem quando estamos sendo atravessados por alguma coisa e, como sabemos, na pandemia estávamos sendo atravessados o tempo todo. Então, acredito que ficou meio a meio, muitos artistas estagnaram e não conseguiram produzir, por esse estado de melancolia extrema, enquanto outros utilizaram a arte como uma forma de evasão”.
Esse processo de evasão, citado pela entrevistada, foi o que conectou o público consumidor e a arte durante a quarentena, tendo em vista que parte das pessoas encontrou nas produções artísticas - sejam elas quais forem - uma forma de escape da realidade que encobria o mundo inteiro.
Quando abordada a relação do público com as artes durante a pandemia, a palavra tecnologia surge como um fator essencial, uma vez que, pelos meios tecnológicos desenvolvidos, não só a arte, como também as relações humanas encontraram uma forma de contornar a distância imposta e se conectar novamente com o mundo social. Mesmo que essas tecnologias ainda estejam presentes no mundo após o momento de reclusão, as pessoas que antes acompanhavam as produções de forma virtual, agora, com o fim do distanciamento, conseguem se acompanhar na realidade com as obras anteriormente online.
Nesse contexto, como o artista percebe essa transformação entre o virtual e o físico? De acordo com Erictopus, compreender essa transição pode ser uma tarefa mais complexa do que se parece, principalmente se considerado o longo período ocupado pelo distanciamento. “Que o público existia, eu tinha noção. Quando o público gostava de algum vídeo no TikTok, no Instagram, eu sabia que ele existia, mas até então era apenas um @ que curtia e comentava algum post. A partir do momento em que essas pessoas se tornaram reais e a @ que comentava nos vídeo se tornou uma pessoa, eu pensei: ‘Nossa, eles realmente são alguém"', relembra o artista.
Ainda sobre o assunto, Júlia relaciona outro fator que influenciou artistas no período de isolamento e de distanciamento: a falta de lugares para a exposição das obras criadas e a exploração do mundo online como uma solução. “Ao mesmo tempo em que o mercado da arte deu uma paralisada, já que não tinha mais galerias para a gente (artistas) expor, o que poderia gerar uma renda, a arte também se inovou com a tecnologia, com exposições virtuais, mercado de arte online, sites em que pessoas do mundo inteiro poderiam conhecer e acessar a sua arte”.
Além da esfera virtual, a arte, mais precisamente os artistas, tiveram que enfrentar diversas outras questões para contornar a pandemia e seus vários efeitos, entre eles, o da estagnação relacionada às criações e ao andamento da arte mundial. Sobre a configuração da arte no período pandêmico e se a arte teria sofrido alguma transformação após as dificuldades enfrentadas, os entrevistados são quase unânimes. Os artistas reforçam que a arte nunca poderia ser vítima de uma estagnação, mas que sempre esteve sujeita a um processo de transformação. "Eu acho que a arte nunca estagnou, e nunca vai, enquanto a gente estiver vivo. Enquanto o ser humano puder estar pensando, sentindo, vivendo, a gente terá uma reação e a reação visual das coisas que acontecem é o que o artista produz", declara Laro.
Ao fazermos uma reflexão acerca das adversidades enfrentadas pelos artistas nesse período, até então desconhecido quando comparado à realidade vivida antes da pandemia, é possível traçar uma linha de pensamento que questione se existe uma arte pré-pandemia e uma arte impactada por ela. Do ponto de vista de Erictopus, tudo é fruto da pandemia, não é que exista o pré e o pós-pandemia, porque, se existisse, seria plausível conseguir produzir algo completamente desvinculado dela, mas não tem. Ele aponta que até mesmo quem tenta omitir a pandemia está falando dela, de forma direta ou indireta.
Mural do artista Kobra homenageia vítimas da Covid-19. Foto: Divulgação/Eduardo Kobra
Para quem gosta de arte e se interesse em cultura, é só acompanhar, seguir e ficar atento às próximas publicações do Blog Vibrance! Gostou do ponto de vista compartilhado pelos entrevistados Erictopus, Júlia Angoti e Laro? A pasta Artista permite conhecê-los melhor.
A imagem do mural desse Eduardo Kobra é extraordinária. Lendo a reportagem de baixo para cima, fiquei a procurar a aparição dele no conteúdo tratado.